Acordei em primeiro de abril de 2.009 com o telefone tocando:
- Alô.
- Tia Mira descansou...
- Lé, vai-t a merda! Isso não é brincadeira que se faça.
- Não é mesmo.
Emudeci. Depois de alguns segundos de silêncio, retomamos a conversa usual dessas ocasiões.
Desliguei o telefone, recostei-me na cama e assisti a um filme da minha vida: algumas conversas, muitas gargalhadas, o apoio e o carinho irrestritos, as repreensões. O amor verdadeiro.
Todos morrerão um dia, isso é certo. Dizem que para morrer, basta estar vivo. Minha tia tinha uma opinião diferente – para morrer é preciso ter vivido. A questão é como morreremos. Segundo a minha tia, como você morrerá depende de como você viveu. Eu constato a força e veracidade dessa afirmação: ela morreu exatamente como viveu – tranqüila, sem alarde, sem incomodar ninguém, sem dar trabalho algum. Morreu e só. Parece que foi mais uma das suas decisões... “87 é um bom número, já pensou no 88? Duas vezes o infinito!!!”
Tantas conversas havidas em meio a jogos de cartas e bolinhos de arroz. Café com rosca de coco, frango com polenta... Natal, páscoa, aniversários... Eu sempre a visitava, mas as vezes, em função dos atropelos da vida, eu apenas telefonava: – “Olá, estou com saudades. Tudo bem? A resposta era invariável – tudo ótimo! Quando você aparece?”
Nas minhas dúvidas, eu a procurava. Eu costumava apoiar-me no muro da casa, observar em silêncio o movimento da cidade, acender mais um cigarro e entrar naquele mundo mágico, onde tudo é possível, onde a maldade nunca teve asilo, onde a ganância não encontrou porto, onde os desejos não se confrontam com erros e acertos – são só experiências a viver!
E era sempre assim. Eu chegava de qualquer jeito – alegre, triste, confusa, decidida e ela sempre me acolhia, me animava, me apoiava ou me repreendia. Sempre fazia da minha lágrima um sorriso, da minha dúvida, uma certeza.
Em 2.007, quando eu decidi que mudaria o rumo da minha vida, claro que fui ter com ela. Contei-lhe das minhas angústias e insatisfações, da minha sensação de inutilidade – eu havia me desesperançado e já não sonhava, nem ousava mais... Ela me ouviu com atenção, sorriu e disse – Vá em frente! O que mais pode lhe acontecer? Se é assim, você já morreu mesmo, que diferença fará tentar?!”
Quando eu decidi ir a Europa, e todos e tudo estavam contra a minha decisão, fui ter com ela. Nesse dia, eu a chamei de Vó, pela primeira e única vez em toda a minha vida. Nas conversas seguintes, quando eu contava dos preparativos e das dificuldades, ela sorria – ah, mas não tem graça uma vida sem obstáculos. Poucos dias antes do embarque, fui despedir-me... Ela me deu um dinheiro e disse – “coma o doce mais doce e pense em mim!”. O tal doce foi uma compota de maça em Barcelona. Não tão doce, porém com um sabor bem conhecido – o sabor da geleia de maça da Tia Mira.
Meses depois, voltei a Europa, não sem antes visitá-la. “Se for a Paris, vá a Rua Lille e depois me conte se a casa do livreiro é mesmo como a descreveu Balzac. Você sabe que essa rua fica do outro lado do Sena, na direção do Louvre.” E lá fui eu, escolhi procurar a rua a visitar o famoso museu. Eu sei que foi a melhor escolha, pois na volta, o entusiasmo e a alegria dela ao ouvir a minha descrição da tal casa, da tal rua... A recitação das frases de Balzac sem compromisso algum com a fidelidade ao que ele realmente escreveu, aliás, seria mesmo Grandet o nome do livreiro? O museu sempre estará lá, posso visitá-lo a qualquer tempo... Porém conversa dessas nunca mais ocorrerá...
E isso é o importante. Eu acredito que isso sim dá sentido à vida, às relações. Essa troca tão única, tão suave. Escolher fazer o "gosto" de quem se ama ao que o mundo padronizou como correto...Isso sim é viver: - sonhar, ousar, evoluir!
De fato, foram nesses encontros todos que eu fui me formando. Foi ela quem me ensinou que uma pessoa é só uma pessoa, que fará as coisas que ela acredita serem as mais corretas e que talvez, e só talvez, o tempo mostre que não tão certas assim. Ela me ensinou a perseguir os sonhos e a respeitar as pessoas – cada um tem sua sina. Se não puder ajude, não atrapalhe. Não interfira, mas faça sempre o que o seu coração ordenar, mesmo que a razão lhe diga que é errado; não se importe com a opinião alheia, siga seu coração e você será sempre feliz.
"A razão é fruto do que aprendemos, o amor não - é só que sentimos no âmago da alma!"
Não importa o que quer que construamos na vida, o que realmente importa são os ensinamentos e os exemplos que deixamos. Todo o resto, não é nada. E é por conta de tudo isso que eu não gosto de conjugar o verbo "voltar".
É certo que choverá no enterro. Segundo ela, essa chuva é a expressão da alegria de Deus em ter de volta, ao seu lado, quem ele tanto ama. E eu Lhe agradeço por ter me permitido desfrutar da companhia e da sabedoria dessa pessoa tão maravilhosa.
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